Sombras, cores frias, olhos grandes, rostos pálidos, estranheza, melancolia, isolamento, morbidez. A que diretor de cinema remetem essas características? Se você pensou em Tim Burton, acertou. O cineasta, que será homenageado em uma mega exposição em São Paulo no ano que vem, tem 44 anos de carreira e alguns prêmios. Os mais recentes deles foram os Oscars de Melhor Figurino e Direção de Arte por Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland), em 2010. O longa-metragem é uma das diversas adaptações do livro homônimo de Lewis Carroll, que completou 150 anos em julho.
A presença de alguns atores é constante nas produções do diretor: Johnny Depp e Helena Bonham Carter – ex-esposa de Burton – são os conhecidos rostos que dão vida a personagens de destaque: o Chapeleiro Maluco e a Rainha Vermelha. Mia Wasikowska é a nova personalidade no filme – uma boa escolha para uma Alice peculiar e determinada e, sob certa ótica, feminista e anarquista. Até mesmo a aparência de Mia se encaixa na imagem de Alice construída por Burton e Carroll.
A versão de Burton traz pouca semelhança com a animação lançada em 1951. Apesar de ambos os longas terem a marca Disney, Burton teve total liberdade para trabalhar cores, formas e ângulos – muito influenciados pelo expressionismo alemão (veja o box abaixo para saber um pouco mais sobre esse movimento artístico). O mesmo acontece com a composição de certos personagens e até mesmo a relevância adquirida por eles no enredo cinematográfico. Um exemplo é o Chapeleiro Maluco, que na animação não possuía tanto destaque.
Apesar de dominada pelas notáveis marcas de Burton, é possível perceber certa influência da Disney, como a trilha sonora que remete ao clima de aventura e a ótica moralista da história – particularidades típicas da produtora, mas não do livro. Embora tenha alterado bastante a estética do cenário em relação à animação, Burton manteve pontos-chave que permitem ao público uma sensação de reconhecimento: o azul do vestido de Alice, o terno do coelho branco, os cavaleiros vermelhos feitos de cartas, o jardim da Rainha Vermelha, o gato sorridente.
Um ponto interessante da produção é a mistura perfeita (e intencional) entre animação e live-action. A maior parte dos quadros foi produzida quase inteiramente em computação gráfica, apesar da presença de atores. Embora tenha sido um dos principais destaques na publicidade do filme na época, a tecnologia 3D não causa grande impacto.
A mescla entre tecnologia e realidade traz à tona um paradigma no campo da interpretação: a dicotomia realidade versus fantasia, marcante nas produções de Burton. O diretor gosta de brincar de corda bamba nessa linha tênue entre as duas. Alice no País das Maravilhas, mais do que outras produções, remete aos sonhos, tanto na estética quanto na temática. Até dado momento, Alice pensa que o que está vivendo é apenas fruto da imaginação, até quebrar uma barreira e se dar conta da realidade fantástica à sua volta. Essa influência tem origem no livro e se revela como uma espécie de metáfora: o processo de amadurecimento da protagonista é determinante para o fechamento da história.
Será que Lewis Carroll iria ficar satisfeito se tivesse visto a adaptação de sua obra por Burton? Os dois compartilham algumas características, como o fascínio pelo impossível, pelo absurdo e pelo fantástico, por exemplo. Escritor, matemático e fotógrafo, Carroll era considerado uma pessoa retraída e até mesmo antissocial – assim como o cineasta.
Para aqueles que assistem apenas por lazer e diversão, sem se preocupar em aprofundar a interpretação, Alice no País das Maravilhas parece mais um filme infantil com alta tecnologia. Mas é possível perceber a produção como resultado de uma quase parceria entre dois artistas, ainda que nunca tenham se encontrado. Burton conseguiu alinhar seu pensamento ao de Carroll, talvez pelas semelhanças de personalidades e interesses; e pôde recriar o universo literário de Alice cinematograficamente, com qualidade. Alice Através do Espelho, a sequência escrita por Lewis Carroll, também está sendo adaptada pelo Walt Disney Studios, com direção de James Bobin e produção de Tim Burton, e estreia nos cinemas no ano que vem.
A excentricidade de Tim Burton transcende a estética, na maioria das vezes, para atingir o âmbito da subjetividade. Isolamento, carência e deslocamento são traços recorrentes em personagens “burtonizados”: o próprio diretor, que enfrentou problemas emocionais na infância, parece compartilhar internamente essas questões. Em Alice no País das Maravilhas, não poderia ser diferente. A protagonista é contrária às regras da educação vitoriana inglesa, e se sente como um peixe fora d’água. Uma das afirmações mais marcantes do filme, “as melhores pessoas são loucas”, indica um manifesto da heroína a favor da loucura de cada um. E, por que não, um manifesto do diretor?